pituxomania43

Friday, September 30, 2005

1.BALANÇO CÍVICO

Balanço Cívico

Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta quadrada, agüentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma reação, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, leva a vida ao som do samba, guarda ainda na noite de sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, - reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta;
Um partido, desmoralizado e materialista, liberal e ateu, cuja Cúpula é o ministério do poder, e cujos responsáveis e afiliados não são mais que tradução em monstruosidade fura-vidas que governa o distrito ou do fura urnas que administra o Estado(1); e, ao pé deste conluio partidário, um grupo casuístico, apadrinhado e apadrinhador, exército de sombras, minando, enredando, absorvendo, pelo mensalão, pela escola, pela oficina, pelo asilo, pelo cabo eleitoral, pelo eleitorado, - força superior, cosmopolita, invencível, adaptando-se com elasticidade inteligente a todos os meios e condições, desde a aldeola íntima, onde berra pela boca epiléptica do fanfarrão milagreiro, até à rica sociedade elegante da capital central, onde o gentilismo é um dandismo de tesouraria, um beatério chic, politiquismo de high-life, prédicas untuosas ( monólogos ao todo poderoso no uso de cuecas valiosas e fralda) e em certos dias, na Sede da moda, o bonito discurso encantador, - luz discreta, flores de luxo, palanque de mogno, cadeiras cômodas, português primoroso, companheiros e companheiras, e frases formosas repetidas dos melhores prosadores da ABL;
Uma elite, cívica e politicamente corrupta até a medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem caráter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e galhofarias, capazes de toda a veniaga e toda infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política nacional sucedam, entre indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverossímeis no Partido congregado... (2);
Um Congresso que importa em milhões de reais, não valendo centavos, como elemento de defesa e garantia autônoma;
Um poder legislativo, meio esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do país, e exercido ao acaso da herança, pelo primeiro que sai dum ventre, - como da roda duma ponta de eixo;
A Justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara a ponto de fazer dela uma saca-rolhas;
...partidos... ora, vários... sem idéias, sem planos, sem convicções, incapazes, na hora do desastre, de sacrificar os interesses próprios e mesquinhos... ou meio centavo ou uma gota de esperança, vivendo... do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos atos, iguais uns aos outros como... partes do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no plenário planetário... – de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar;
Um partido..., quase circunscrito..., avolumando ou diminuindo segundo erros da força sindical..., hoje aparentemente forte e numeroso, amanhã exaurido e letárgico, - água de poça inerte, transbordando se há chuva, tumultuando se há vento, furiosa um instante, imóvel em seguida, e evaporada logo, em lhe batendo dois dias de sol do sertão ardente; um partido composto sobretudo de pequenos grupos regionais, adstritos ao sedentarismo crônico do metro e da balança, dente de balcão, não de guerreiros, com um estado-maior pacífico e desconexo de velhos doutrinários, moços positivistas, românticos, jacobinos e declamadores, homens de boa fé, alguns de valia mas nenhum a valer; um partido, enfim, de índole estreita, acanhadamente político-eleitoreiro, mais negativo que afirmativo, mais de demolição que de reconstrução, faltando-lhe um chefe de autoridade abrupta, uma dessas cabeças firmes e superiores, olhos para iluminar e boca para mandar, - um desses homens predestinados, que são em crises históricas o ponto de intercepção de milhões de almas e vontades, acumuladores elétricos da vitalidade de uma raça, cérebro omnímodos, compreendendo tudo, adivinhando tudo, mudando tudo sem deixar se mudar - livro de cifras, livro de arte, livro de história, simultaneamente humanos e patriotas, do globo e da rua, do tempo e do minuto, forças supremas, forças invencíveis, que levam um povo de abalada, como quem leva ao colo uma criança;
Instrução miserável, Ministério da Educação nulo, da Cultura tocado ao som da MPB, UNE descaracterizada com condução jegue de orelha meio em pé envergada para o luto, agricultura industrializada para o rico e de desnutrida subsistência rudimentar para o pobre;
Um regime econômico baseado na inscrição e no empenho clamoroso de um subjetivo homem único contra todos..., perda de gente e perda de capital, autofagia coletiva, organismo vivendo e morrendo do parasitismo de si próprio;
Liberdade absoluta, neutralizada por uma desigualdade revoltante, - o direito garantido virtualmente na lei, posto, de fato, à mercê dum apadrinhado de batoteiros, sendo vedado, ainda aos mais orgulhosos e mais fortes, abrir caminho nesta porcaria, sem recorrer à influência tirânica e degradante de qualquer dos bandos partidários;
Uma literatura iconoclasta, - meia dúzia de homens que, no verso e no romance, no panfleto e na história, haviam desmoronado a cambaleante cenografia verde a amarela da classe dominante de..., opondo uma arte de sarcasmo, viril e humana, à fraudulagem pelintra da literatura oficial, carimbada para a imortalidade do esquecimento com cruz indelével da ordem mendicante...;
Uma geração nova das escolas, entusiastas, irreverentes, revolucionária, destinada, porém, como as anteriores, viva maré dum instante, a refluir anódina e apática ao charco das conveniência e dos interesses, dela restando apenas, isolados, meia dúzia de homens inflexos e direitos, indemnes à podridão contagiosa pela vacina orgânica dum caráter moral excepcionalíssimo.
E se a isso juntarmos um pessimismo canceroso e corrosivo, minando as almas, cristalizando já em fórmulas banais e populares, tão bons são uns como os outros, corja de pantomineiros, cambada de ladrões, tudo uma choldra, etc., etc., - teremos em sintético esboço a fisionomia da nacionalidade... no tempo da morte de um partido delirante..., cujo reinado de paz podre vem dia a dia supurando em gangrenamentos terciários.
O advento do materialismo capitalista, inaugurado pela ironia céptica do coronelismo desbravado, acabava pela galhofa cínica do poder canavieiro... O riso da hiena, levemente amargo, estridente, desfechava no riso canalha do duo encrenqueiro pertinente baiano-maranhense do Planalto. Os patuscos terminavam em malandros.

(1) Há exceções individuais, claramente. A fisionomia geral, no entanto, é aquela.
(2) Se o Nazareno, entre ladrões, fosse hoje crucificado em plena Praça dos Três Poderes, ao terceiro dia, em vez do Justo, ressuscitariam os bandidos. Ao terceiro dia? Que digo eu! Em 24 horas andavam na rua, sãos como cachorros com coleiras tricolores.

Nota:
Texto parcialmente extraído da obra "A Pátria", datada de 1896, do escritor Guerra Junqueiro. Este texto, herança lusitana, quase que atemporal, sofreu lapidações nos locais e frases para fazer sentido, mesmo que de forma paralela, no contexto da realidade política do Brasil de hoje.